Ocorreu na comarca de Imienska, no noroeste da Polônia, que um juiz ateu julgou improcedente uma ação movida por um advogado filiado à Igreja Ortodoxa, que requeria a condenação do prefeito da cidade a ressarcir os cofres públicos com os 500 zlotz que mandou aplicar numa festividade religiosa promovida pela Igreja Católica daquela cidade. Argumentou o juiz que o estado era laico, mas o população era crente e que não se podia negar esse fato, então entendeu justificada e bem empregada a despesa. Esse trecho da sentença praticamente lhe valeu uma promoção, pois o tribunal ao qual estava vinculado era quase um sínodo. O apelante afirmou no seu recurso que o pagamento da verba havia sido, inclusive, assegurado por um ex-membro daquele tribunal e conhecido como grande ímprobo e reconhecidamente carola, que havia, em tempos passados, livrado a cara do prefeito em um processo que envolvia uma negociata de madeira cortada do bosque municipal. Por isso o processo estava manchado por segundas intenções.
Alguns meses depois o tribunal reuniu-se para o julgamento em sessão pública e concorrida com a presença do bispo em pessoa, com seu sapatinho de verniz vermelho e ladeado por um punhado de padres severos. Muitos curiosos acorreram e o plenário estava lotado. O relator do processo não perdeu tempo e depois de afirmar que “em todos os foruns deste Estado está autorizada a despesa para compra do crucifixo, especialmente para instalação nos salões do júri, símbolo da misericórdia”, disse que a ação era movida por rancor religioso de facção pouco reconhecida no seio da comunidade e que a decisão do juiz atendeu à espiritualidade do povo.
– Não havia visto a questão sob este prisma, interrompeu o juiz Smolensky, homem devoto e sincero – mas de fato o colega tem toda a razão, pois Cristo deve reinar em todas as salas da Justiça.
– Agradeço a adesão, caro colega – disse o relator – não podemos esquecer que a justiça é a casa da misericórdia e que Deus vela por todos nós.
O estagiário anarquista Pitiovzky, sentado na primeira fila da plateia cochichou no ouvido de seu colega ao lado, o estudante Pulev:
– Eu sempre pensei que justiça e misericórdia não devem andar de mãos dadas, afinal, como diz o ditado, quem faz bem ao mal torna-o pior. Pra mim é voto suspeito, pois tem o rabo preso com o Poderoso.
– Cale-se! – retrucou o colega – que o juiz Dimitreko vai falar.
E, de fato, o juiz Dimitrenko havia pedido a palavra:
– Eu gostaria de dizer que, em primeiro lugar, sou cristão, mas não gosto de procissões e festas religiosas, que são reminiscências pagãs. Lugar de cristão é dentro da igreja e não do lado de fora, gemendo e orando todo perfumado e com roupas compradas às escondidas na alfaiataria do judeu Zminsky.
– Veja, veja – disse o estudante Stepanovitch ao colega, este juiz sabe colocar as ideiais dele com precisão, o que acha?
– Cale-se você agora, que estou escutando!
– … é por tais razões que essas domingueiras e folguedos dos santos não devem ser financiados pelo poder público, pois estimulam a violação dos mandamentos, atiçam a vaidade e até a luxúria.
– Juiz Dimitrenko – escandalizou-se o presidente do tribunal – como pode vossa excelência falar em luxúria em festas tão discretas?
– E acaso vossa excelência não se recorda que foi numa festa dessas que a esposa do funcionário de 1a. classe Rustinov foi apalpada sem reagir pelo subordinado do marido, aquele estafeta Bletin, e que o casamento deles acabou justamente por causa daquela cena pública, justo na hora da Eucaristia?
Um rumor de aprovação percorreu o auditório.
– Bem, foi um ato lamentável mas isolado – ponderou o presidente.
– E, se meus olhos não me enganam, não é o próprio estafeta Bletin que está sentado logo ali atrás do nosso bispo? – replicou o juiz Dimitrenko – Aliás, a coisa toda aconteceu bem na frente de sua eminência, que pode confirmar.
Ao ouvir isso, todo o auditório se virou para conferir a informação do juiz Dimitrenko, menos o bispo, que ajeitou-se todo na cadeira, incomodado por ter sido citado como testemunha. Um surdo burburinho percorreu a sala e agora todos os olhos se voltavam para o juiz Gomolev-Stronsky, atual esposo da mulher do funcionário da 1a. classe Rustinov.
O juiz Gomolev era velho e se comentava que em breve seria trocado por algum outro estafeta do próprio gabinete. Por isso, suportou em silêncio com a altivez que lhe sobrou os olhares já concupiscentes da assistência, que começava a pegar gosto pelo debate.
O estagiário Pitiovisky cutucou o colega e disse:
– A coisa está esquentando, olhe, lá se levanta o juiz Dimitrenko!
Com efeito, o juiz Dimitrenko se levantara, mas para aliviar a bexiga. Quando voltou exibia uma enorme mancha de urina na calça, tão visível que o estagiário Pitiovsky, ao notar a repugnação do bispo, sorriu e disse:
– Esse homem é dos meus, olhe lá, todo mijado e não está nem um pouco preocupado. Mija nas calças mas não caga na Justiça. Vamos ver o que sai agora, aposto que ele vai falar daquele carola prevaricador que assegurou esse pagamento.
De fato, o juiz Dimitrenko, na primeira oportunidade, pediu a palavra:
– Senhores, espero não ter perdido nada, além de um litro de urina que estava aqui me incomodando, como todo mundo já deve ter notado.
O auditório quase rebentou de tanto rir, menos o bispo e a caterva de padres que o acompanhavam.
– Juiz Dimitrenko, olhe o decoro, que lhe casso a palavra.
– Ah, isso não. Pode até suspender a sessão, cassar a palavra não, que não sou advogado. Só tenho a dizer que prefiro urinar na latrina do que no dinheiro público. Essa procissão eu não acompanho.
O bispo não se conteve mais. Levantou-se e protestou:
– Já suportei demais, ouvindo esse homem ofender nossos valores sagrados. Emporcalha tudo com esse materialismo sinistro.
– A palavra dele o senhor agora bem que podia cassar, presidente – respondeu o juiz Dimitrenko.
– Vossa Eminência não deve manifestar-– advertiu maquinalmente o presidente – sente-se e aprecie.
– Apreciar, apreciar o quê?- replicou o bispo indignado.
– Como ele gosta de falar, presidente, disse o juiz Dimitrenko – puxamos uma cadeirinha pra ele, quem sabe?
– O senhor é um descarado – guinchava o bispo.
– Senhor bispo – interpôs o juiz Dimitrenko – o que devemos pensar aqui desse seu sapatinho vermelho? É tão delicado. Coisa sã não parece.
O estagiário Pitiovsky emocionou-se e também se levantou:
– Abaixo a Igreja! Morte aos padres.
– Prendam-no! – ordenou o presidente.
– Não, eu recebo embutido nessas palavras de ordem um habeas corpus – disse o juiz Dimitrenko – soltem-no! Aqui todo mundo diz o que pensa.
O meirinho ficou sem saber o que fazer e olhava desorientado o presidente, que resolveu simplesmente determinar que os estudantes fossem retirados do recinto, aproveitando para ser equitativo, pois o bispo já se fora, puxando a batina para esconder o delicado pisante.
– Onde estávamos mesmo, perguntou o juiz Smolensky?
– Eu queria fazer uma observação ao presidente – replicou o juiz Gomolev-Stronsky – Porque o funcionário Bletin, estopim desta discussão infernal, ainda se encontra no recinto?
– Posso responder a vossa excelência – disse o Juiz Dimitrenko – é porque ele pensa que é invisível, embora todo mundo agora mesmo, esteja olhando para a cara sem vergonha dele.
Foi o que bastou para o estafeta dar um pulo de sua cadeira e lançar-se porta afora, onde topou com os dois estudantes na calçada:
– Olá, Bletin, do lado de fora também?
– É, o clima lá está quente demais.
– Então vamos tomar um café.
– E o julgamento? Ainda não saiu o veredito.
– Claro que sim – disse Pitiovsky, já estava julgado antes de começar. Nós queremos agora é que você nos conte como foi a história em que o teu primo te corneou no ano passado.