– Meu amo – disse Sancho, Vossa Mercê pode me explicar o que é isto que está escrito nesta folha que recebi da Corte de Apelação Real?
– Deixe-me ver – respondeu D. Quixote. Apanhou o papel, leu e o devolveu cerimoniosamente a Sancho – O que você não entendeu?
– Isso aqui, onde fala “duplicação prazal”…
– Ah, meu Sancho – redarguiu Dom Quixote – isso são grandezas descomunais que os poderosos da Justiça usam. São expressões feras e desabridas que não são dadas ao conhecimento do vulgo, caso contrário os bacharéis não teriam como ganhar a vida explicando-as aos que suplicam às portas da Lei e que eles representam.
– Sim, meu amo – respondeu Sancho, mas Vossa Mercê, que é versado tanto nas Artes da Cavalaria quanto nas letras, por certo as compreende, que nesta cabeça minha não cabem coisas sutis e preferia eu comer um bom pedaço de queijo com cebola do que me torturar com essas lindezas.
Riu-se Dom Quixote da simplicidade de Sancho e disse-lhe: Meu fiel escudeiro, “duplicacão prazal” significa que o prazo é contado em dobro e aqui diz que você não tem direito a esse prazo.
– Mas – espantou-se Sancho, eu não quero nada em dobro, só quero saber porque o autor deste romance devolveu o meu Ruço sem nenhuma explicação depois de me fazer andar a pé durante tanto tempo, pois todo mundo sabe que ele foi furtado vinte capítulos atrás.
– Sancho, Sancho – disse Dom Quixote, você não leu aqui no “voto relatorial” que, como um simples personagem de ficção, você não pode interpelar um fidalgo de carne e osso, daqueles de lança e cabildo?
– Meu amo – disse Sancho, o único voto que conhece é o “voto aos céus”. Isso de “voto relatorial” está me parecendo coisa de mouros.
– Isso é – concordou Dom Quixote, que coisa cristã não pode ser. Eu, que já li todos os livros de cavalaria que foram escritos e ainda aqueles que não foram, nem no D. Belianis encontrei tal expressão. Desconheceis, por certo, a fina arte do “Juridiquês”, que é o favor e o amparo daquela gente desmesurada da Justiça. É ars profana que a tudo obnubila, seus praticantes são nigromantes mestres no embaralhamento das coisas, que quando pegam um raminho de salsa não sossegam até transformá-lo numa sopa grossa de alhos e cebolas. Por acaso já percebestes que o próprio autor desta história deles zomba naquela parte que diz “a razão da sem-razão que à minha razão se faz, de tal maneira a minha razão enfraquece, que com razão me queixo da vossa formosura”?
– Não me fale Vossa mercê de cebolas que meu estômago já começa a escoicear, pois se não me engano já anoitecei e ainda não ceamos. E se a memória falha a barriga lembra e como diz o outro saco vazio não pára em pé e de grão em grão a galinha enche o papo e mais vale uma cebola na mão do que duas no mercado.
– Chega desses provérbios, que já discutimos sobre isso – protestou Dom Quixote – mas tens razão. Os da tua condição são levados pela força das vísceras, enquanto nós, cavaleiros, vivemos de nossos feitos e glórias e da lembrança de nossa amada a quem elas são devotadas. Mas, diga-me Sancho, o que pretendes fazer agora que o voto relatorial foi aprovado pelo “consenso cameral”?
– Isso de “consenso cameral” eu não sei e Vossa Mercê parece que está a sovar-me o bestunto com boa gana. – respondeu Sancho – mas como meu amo e senhor do meu destino, e que me conhece melhor que minha mãe, sabe que posso ter curto entendimento, mas para burro não sirvo e se não entendo as coisas, não sossego até entender. Como o meu pedido era sobre o asno, vou fazer uma apelação asnal.
– Fazes bem, amigo Sancho – riu-se Dom Quixote, já se vê que para tanto não precisaremos da ajuda do nosso amigo rábula.
Parece que estou relendo as páginas do glorioso Caballero de la Mancha, o virtuoso Don Quixote desabastado e permanentemente à procura de sua muito querida Dulcineia… De vez em quando “torturado”pelo seu fiel escudeiro Sancho Pança.
Muito bom, Hélio!